Por Jean de Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon
No dia 7 de
março de 1557 chegou a Guanabara um grupo de huguenotes (calvinistas franceses)
com o propósito de ajudar a estabelecer um refúgio para os calvinistas
perseguidos na França. Perseguidos também na Guanabara em virtude de sua fé
reformada, alguns conseguiram escapar; outros, foram condenados à morte por
Villegaignon, foram enforcados e seus corpos atirados de um despenhadeiro, em
1558. Antes de morrer, entretanto, foram obrigados a professar por escrito sua
fé, no prazo de doze horas, respondendo uma série de perguntas que lhes foram
entregues. Eles assim o fizeram, e escreveram a primeira confissão de fé na
América (ver Apêndice 2), sabendo que com ela estavam assinando a própria
sentença de morte. [1]
Segundo a
doutrina de S. Pedro Apóstolo, em sua
primeira epístola, todos os cristãos devem estar sempre prontos para dar razão
da esperança que neles há, e isso com toda a doçura e benignidade, nós abaixo
assinados, Senhor de Villegaignon, unanimemente (segundo a medida de graça que
o Senhor nos tem concedido) damos razão, a cada ponto, como nos haveis apontado
e ordenado, e começando no primeiro artigo:
I. Cremos
em um só Deus, imortal, invisível, criador do céu e da terra, e de
todas as coisas, tanto visíveis como invisíveis, o qual é distinto em três
pessoas: o Pai, o Filho e o Santo Espírito, que não constituem senão uma mesma
substância em essência eterna e uma mesma vontade; o Pai, fonte e começo de
todo o bem; o Filho, eternamente gerado do Pai, o qual, cumprida a plenitude do
tempo, se manifestou em carne ao mundo, sendo concebido do Santo Espírito,
nasceu da virgem Maria, feito sob a lei para resgatar os que sob ela estavam, a
fim de que recebêssemos a adoção de próprios filhos; o Santo Espírito,
procedente do Pai e do Filho, mestre de toda a verdade, falando pela boca dos
profetas, sugerindo as coisas que foram ditas por nosso Senhor Jesus Cristo aos
apóstolos. Este é o único Consolador em aflição, dando constância e
perseverança em todo bem.
Cremos que
é mister somente adorar e perfeitamente amar, rogar e invocar a majestade de
Deus em fé ou particularmente.
II. Adorando
nosso Senhor Jesus Cristo, não separamos uma natureza da outra,
confessando as duas naturezas, a saber, divina e humana nele inseparáveis.
III. Cremos,
quanto ao Filho de Deus e ao Santo Espírito, o que a Palavra de
Deus e a doutrina apostólica, e o símbolo,[3] nos ensinam.
IV. Cremos
que nosso Senhor Jesus Cristo virá julgar os vivos e os mortos, em
forma visível e humana como subiu ao céu, executando tal juízo na forma em que
nos predisse no capítulo vinte e cinco de Mateus, tendo todo o poder de julgar,
a Ele dado pelo Pai, sendo homem.
E, quanto
ao que dizemos em nossas orações, que o Pai aparecerá enfim na pessoa do Filho,
entendemos por isso que o poder do Pai, dado ao Filho, será manifestado no dito
juízo, não todavia que queiramos confundir as pessoas, sabendo que elas são
realmente distintas uma da outra.
V. Cremos
que no santíssimo sacramento da ceia, com as figuras corporais do
pão e do vinho, as almas fiéis são realmente e de fato alimentadas com a
própria substância do nosso Senhor Jesus, como nossos corpos são alimentados de
alimentos, e assim não entendemos dizer que o pão e o vinho sejam transformados
ou transubstanciados no seu corpo, porque o pão continua em sua natureza e
substância, semelhantemente ao vinho, e não há mudança ou alteração.
Distinguimos
todavia este pão e vinho do outro pão que é dedicado ao uso comum, sendo que
este nos é um sinal sacramental, sob o qual a verdade é infalivelmente
recebida. Ora, esta recepção não se faz senão por meio da fé e nela não convém
imaginar nada de carnal, nem preparar os dentes para comer, como santo
Agostinho nos ensina, dizendo: “Porque preparas tu os dentes e o ventre? Crê, e
tu o comeste.”
O sinal,
pois, nem nos dá a verdade, nem a coisa significada; mas Nosso Senhor Jesus
Cristo, por seu poder, virtude e bondade, alimenta e preserva nossas almas, e
as faz participantes da sua carne, e de seu sangue, e de todos os seus
benefícios.
Vejamos a
interpretação das palavras de Jesus Cristo: “Este pão é meu corpo.” Tertuliano,
no livro quarto contra Marcião, explica estas palavras assim: “este é o sinal e
a figura do meu corpo.”
S.
Agostinho diz: “O Senhor não evitou dizer: — Este é o meu corpo, quando dava
apenas o sinal de seu corpo.”
Portanto
(como é ordenado no primeiro cânon do Concílio de Nicéia), neste santo
sacramento não devemos imaginar nada de carnal e nem nos distrair no pão e no
vinho, que nos são neles propostos por sinais, mas levantar nossos espíritos ao
céu para contemplar pela fé o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus, sentado à
destra de Deus, seu Pai.
Neste
sentido podíamos jurar o artigo da Ascensão, com muitas outras sentenças de
Santo Agostinho, que omitimos, temendo ser longas.
VI. Cremos
que, se fosse necessário pôr água no vinho, os evangelistas e São
Paulo não teriam omitido uma coisa de tão grande conseqüência.
E quanto ao
que os doutores antigos têm observado (fundamentando-se sobre o sangue
misturado com água que saiu do lado de Jesus Cristo, desde que tal observância
não tem fundamento na Palavra de Deus, visto mesmo que depois da instituição da
Santa Ceia isso aconteceu), nós não podemos hoje admitir necessariamente.
VII. Cremos
que não há outra consagração senão a que se faz pelo ministro, quando se
celebra a ceia, recitando o ministro ao povo, em linguagem
conhecida, a instituição desta ceia literalmente, segundo a forma que nosso
Senhor Jesus Cristo nos prescreveu, admoestando o povo quanto à morte e paixão
do nosso Senhor. E mesmo, como diz santo Agostinho, a consagração é a palavra
de fé que é pregada e recebida em fé. Pelo que, segue-se que as palavras
secretamente pronunciadas sobre os sinais não podem ser a consagração como
aparece da instituição que nosso Senhor Jesus Cristo deixou aos seus apóstolos,
dirigindo suas palavras aos seus discípulos presentes, aos quais ordenou tomar
e comer.
VIII. O
santo sacramento da ceia não é alimento para o corpo como para as almas (porque nós não imaginamos nada de
carnal, como declaramos no artigo quinto) recebendo-o por fé, a qual não é
carnal.
IX. Cremos
que o batismo é sacramento de penitência, e como uma entrada na igreja de Deus,
para sermos incorporados em Jesus Cristo. Representa-nos a remissão
de nossos pecados passados e futuros, a qual é adquirida plenamente, só pela morte
de nosso Senhor Jesus.
De mais, a
mortificação de nossa carne aí nos é representada, e a lavagem, representada
pela água lançada sobre a criança, é sinal e selo do sangue de nosso Senhor
Jesus, que é a verdadeira purificação de nossas almas. A sua instituição nos é
ensinada na Palavra de Deus, a qual os santos apóstolos observaram, usando de
água em nome do Pai, do Filho e do Santo Espírito. Quanto aos exorcismos,
abjurações de Satanás, crisma, saliva e sal, nós os registramos como tradições
dos homens, contentando-nos só com a forma e instituição deixada por nosso
Senhor Jesus.
X. Quanto ao livre arbítrio,
cremos que, se o primeiro homem, criado à imagem de Deus, teve liberdade e
vontade, tanto para bem como para mal, só ele conheceu o que era livre arbítrio,
estando em sua integridade. Ora, ele nem apenas guardou este dom de Deus, assim
como dele foi privado por seu pecado, e todos os que descendem dele, de sorte
que nenhum da semente de Adão tem uma centelha do bem.
Por esta
causa, diz São Paulo, o homem natural não entende as coisas que são de Deus. E
Oséias clama aos filho de Israel: “Tua perdição é de ti, ó Israel.” Ora isto
entendemos do homem que não é regenerado pelo Santo Espírito.
Quanto ao
homem cristão, batizado no sangue de Jesus Cristo, o qual caminha em novidade
de vida, nosso Senhor Jesus Cristo restitui nele o livre arbítrio, e reforma a
vontade para todas as boas obras, não todavia em perfeição, porque a execução
de boa vontade não está em seu poder, mas vem de Deus, como amplamente este
santo apóstolo declara, no sétimo capítulo aos Romanos, dizendo: “Tenho o
querer, mas em mim não acho o realizar.”
O homem
predestinado para a vida eterna, embora peque por fragilidade humana, todavia
não pode cair em impenitência.
A este
propósito, S. João diz que ele não peca, porque a eleição permanece nele.
XI. Cremos
que pertence só à Palavra de Deus perdoar os pecados, da qual, como
diz santo Ambrósio, o homem é apenas o ministro; portanto, se ele condena ou
absolve, não é ele, mas a Palavra de Deus que ele anuncia.
Santo
Agostinho, neste lugar diz que não é pelo mérito dos homens que os pecados são
perdoados, mas pela virtude do Santo Espírito. Porque o Senhor dissera aos seus
apóstolos: “recebei o Santo Espírito;” depois acrescenta: “Se perdoardes a
alguém os seus pecados,” etc.
Cipriano
diz que o servo não pode perdoar a ofensa contra o Senhor.
XII. Quanto
à imposição das mãos, essa serviu em seu tempo, e não há
necessidade de conservá-la agora, porque pela imposição das mãos não se pode
dar o Santo Espírito, porquanto isto só a Deus pertence.
No tocante
à ordem eclesiástica, cremos no que S. Paulo dela escreveu na primeira epístola
a Timóteo, e em outros lugares.
XIII. A
separação entre o homem e a mulher legitimamente unidos por casamento não se
pode fazer senão por causa de adultério, como nosso Senhor ensina
(Mateus 19:5). E não somente se pode fazer a separação por essa causa, mas
também, bem examinada a causa perante o magistrado, a parte não culpada, se não
podendo conter-se, deve casar-se, como São Ambrósio diz sobre o capítulo sete
da Primeira Epístola aos Coríntios. O magistrado, todavia, deve nisso proceder
com madureza de conselho.
XIV. São
Paulo, ensinando que o bispo deve ser marido de uma só mulher, não
diz que não lhe seja lícito tornar a casar, mas o santo apóstolo condena a
bigamia a que os homens daqueles tempos eram muito afeitos; todavia, nisso
deixamos o julgamento aos mais versados nas Santas Escrituras, não se fundando
a nossa fé sobre esse ponto.
XV. Não
é lícito votar a Deus, senão o que ele aprova. Ora, é assim que os
votos monásticos só tendem à corrupção do verdadeiro serviço de Deus. É também
grande temeridade e presunção do homem fazer votos além da medida de sua
vocação, visto que a santa Escritura nos ensina que a continência é um dom
especial (Mateus 15 e 1 Coríntios 7). Portanto, segue-se que os que se impõem
esta necessidade, renunciando ao matrimônio toda a sua vida, não podem ser
desculpados de extrema temeridade e confiança excessiva e insolente em si
mesmos.
E por este
meio tentam a Deus, visto que o dom da continência é em alguns apenas temporal,
e o que o teve por algum tempo não o terá pelo resto da vida. Por isso, pois,
os monges, padres e outros tais que se obrigam e prometem viver em castidade,
tentam contra Deus, por isso que não está neles o cumprir o que prometem. São
Cipriano, no capítulo onze, diz assim: “Se as virgens se dedicam de boa vontade
a Cristo, perseverem em castidade sem defeito; sendo assim fortes e constantes,
esperem o galardão preparado para a sua virgindade; se não querem ou não podem
perseverar nos votos, é melhor que se casem do que serem precipitadas no fogo
da lascívia por seus prazeres e delícias.” Quanto à passagem do apóstolo S.
Paulo, é verdade que as viúvas tomadas para servir à igreja, se submetiam a não
mais casar, enquanto estivessem sujeitas ao dito cargo, não que por isso se
lhes reputasse ou atribuísse alguma santidade, mas porque não podiam bem
desempenhar os deveres, sendo casadas; e, querendo casar, renunciassem à
vocação para a qual Deus as tinha chamado, contudo que cumprissem as promessas
feitas na igreja, sem violar a promessa feita no batismo, na qual está contido
este ponto: “Que cada um deve servir a Deus na vocação em que foi chamado.” As
viúvas, pois, não faziam voto de continência, senão porque o casamento não
convinha ao ofício para que se apresentavam, e não tinha outra consideração que
cumpri-lo. Não eram tão constrangidas que não lhes fosse antes permitido casar
que se abrasar e cair em alguma infâmia ou desonestidade.
Mas, para
evitar tal inconveniência, o apóstolo São Paulo, no capítulo citado, proíbe que
sejam recebidas para fazer tais votos sem que tenham a idade de sessenta anos,
que é uma idade normalmente fora da incontinência. Acrescenta que os eleitos só
devem ter sido casados uma vez, a fim de que por essa forma, tenham já uma
aprovação de continência.
XVI. Cremos
que Jesus Cristo é o nosso único Mediador, intercessor e advogado,
pelo qual temos acesso ao Pai, e que, justificados no seu sangue, seremos
livres da morte, e por ele já reconciliados teremos plena vitória contra a
morte.
Quanto aos
santos mortos, dizemos que desejam a nossa salvação e o cumprimento do Reino de
Deus, e que o número dos eleitos se complete; todavia, não nos devemos dirigir
a eles como intercessores para obterem alguma coisa, porque desobedeceríamos o
mandamento de Deus. Quanto a nós, ainda vivos, enquanto estamos unidos como
membros de um corpo, devemos orar uns pelos outros, como nos ensinam muitas
passagens das Santas Escrituras.
XVII. Quanto
aos mortos, São Paulo, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, no
capítulo quatro, nos proíbe entristecer-nos por eles, porque isto convém aos
pagãos, que não têm esperança alguma de ressuscitar. O apóstolo não manda e nem
ensina orar por eles, o que não teria esquecido se fosse conveniente. S.
Agostinho, sobre o Salmo 48, diz que os espíritos dos mortos recebem conforme o
que tiverem feito durante a vida; que se nada fizeram, estando vivos, nada
recebem, estando mortos.
Esta é a
resposta que damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida e porção da fé, que Deus nos deu, suplicando
que lhe praza fazer que em nós não seja morta, antes produza frutos dignos de
seus filhos, e assim, fazendo-nos crescer e perseverar nela, lhe rendamos
graças e louvores para sempre. Assim seja.
Jean du
Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la Fon.
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* Extraído
de Paulo R. B. Anglada, Sola Scriptura: A
Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Editora Os Puritanos,
1998), 190-197.
[1] O relato da história dos mártires
huguenotes no Brasil, bem como a Confissão de Fé que escreveram, encontra-se no
livro A Tragédia da Guanabara: História dos Protomartyres
do Christianismo no Brasil, traduzido por Domingos Ribeiro; de um
capítulo intitulado On the Church of the Believers in
the Country of Brazil, part of Austral America: Its Affliction and Dispersion,
do livro de Jean Crespin: l’ Histoire des Martyres,
originalmente publicado em 1564. Este livro, por sua vez, é uma tradução de um
pequeno livro: Histoire des choses mémorables
survenues en le terre de Brésil, partie de l’ Amérique australe, sous le
governement de N. de Villegaignon, depuis l’ an 1558, publicado em
1561, cuja autoria é atribuída a Jean Lery, um dos huguenotes que vieram para o
Brasil em 1557, o qual também publicou outro livro sobre sua viagem ao Brasil: Histoire
d’an voyage fait en la terre du Brésil.
[2] O texto foi transcrito de Jean
Crespin, A Tragédia da Guanabara; História
dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, 65-71. O português
antigo de Domingos Ribeiro (o tradutor) foi atualizado.
Artigo
extraído do site Monergismo
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